2015: reflexões de um ano “quase” feminista

[suspiro]

Se isso fosse um vlog, na tentativa de explicar 2015 haveria um longo suspiro – porque cá entre nós foi um ano pra lá de puxado; e é claro que eu estou falando em termos de Brasil.

Prestes a acabar o ano, pensei em fazer aquela mega retrospectiva, ressaltando os pontos mais relevantes do ano e tal, mas talvez nem seja necessário, porque muita gente está sabendo que 2015 desencadeou um enorme processo no que diz respeito a consciência-política-feminista e a sucessão de mobilizações em torno da subjugação da mulher.

Muita gente sabe que houve, sim, uma #PrimaveraDasMulheres; que muitas se uniram e muito conversaram sobre a ideia de fundar um partido feminista que, apesar da crise de representatividade na política institucional, as represente; que elas foram para as ruas na Marcha das Margaridas, na Marcha das Mulheres Negras; gritaram o côro #ForaCunha, ao reivindicar pelo óbvio, contra um Projeto de Lei que pretende legislar e controlar o corpo das mulheres, além de insistir em promover a cultura do estupro;  muita gente também sabe que milhares de meninas e mulheres relataram seu #primeiroassédio na internet, saindo da condição do silêncio e denunciando também os “amigos secretos” machistas na campanha #MeuAmigoSecreto, que apontou para o machismo estrutural, naturalizado no cotidiano brasileiro. Houve também muitas ocupações dos espaços públicos para conversar sobre uma Cidade das Mulheres, como esta que ocorreu em Porto Alegre.

O ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) também foi considerado feminista, porque trouxe questões a partir das reflexões de Simone de Beauvoir e como proposta de  tema de redação  “A insistência da violência contra a Mulher”. Não por acaso, porque no início deste ano foi sancionada a lei que torna hediondo o Feminicídio – assassinato de mulheres pela condição de serem mulheres. Os números são assustadores: Só em 2013, de acordo com o Mapa da Violência, dos 4.762 homicídios de mulheres, 2.394, foram perpetrados por um familiar da vítima e 1.583 dessas mulheres foram mortas pelo parceiro ou ex-parceiro. Sem contar nos números de estupros que não são denunciados por medo ou constrangimento e, claro, que não foi levado em conta as mulheres transexuais. Para ampliar o debate e sistematizar a violência contra a mulher, a agência Patrícia Galvão, criou um importante Dossiê Violência Contra as Mulheres, que disponibiliza um conteúdo multimídia com estudos, estatísticas, leis e uma série de informações que auxiliam no combate à violência contra as mulheres.

Recentemente estive numa livraria de Belém do Pará, onde vivo atualmente, e me deparei com  uma foto impactante que estampava a capa de um desses tabloides sanguinários. Algo como “Mulher é assassinada a tiros pelo marido”. Eu entrei em colapso, quis chorar muito, tive muita raiva. Mostrei para uma pessoa próxima a mim e ela disse algo do tipo: “Acontece sempre isso aqui. É normal”. O que me dá muito medo é essa natualização da violência. Violência Estatal, violência contra jovens e negros, contra os indígenas, contra os pobres, contra os gays, as lésbicas, as pessoas transexuais, contra as mulheres; violência contra todxs aquelxs que certamente um texto de blog, às vésperas de um revéillon, não daria conta de problematizar.

O fato é que com este cenário, eu, que me descobri feminista em 2015, tenho três grandes desejos – ou pedidos: Que em 2016 nós, que estamos em centenas de movimentos sociais Brasil afora, que pensamos numa democracia feminista, anti-capitalista, anti-racista, contra hegemônica; nós que falamos tanto (e será que pensamos?) numa transformação social radical e tanto usamos o termo EMPODERAMENTO, que paremos de reproduzir o regime de pensamento autoritário e este sistema de opressão da dominação masculina e patriarcal dentro dos movimentos sociais e que deixemos os nossos narcisismos das pequenas diferenças de lado e lutemos contra aquilo/aqueles que nos oprimem. Contra o sistema. Outra coisa é ampliar o debate sobre o tal do EMPODERAMENTO e sinalizar o acesso às políticas públicas para aquelas mulheres que estão nas bordas, sofrendo violência doméstica, à mercê dos seus maridos. Isso é bem mais urgente que discutir feminismo em “bolhas”, como chamam, no vocabulário da militância. O último é que nos preparemos para a política partidária. Seja na fundação de um novo partido político de base feminista ou na filiação daqueles poucos que acreditamos, porque não dá para substituir um poder pelo outro, senão, ressignificá-lo pelas bases e transformá-lo em potência.

Por fim, meus votos para um 2016 sem retrocessos, com mais ativismo, menos narcisismo e mais enfrentamento! E, pra fechar, com a maravilhosa voz ativa de Elza Soares! ❤

Como conversar com um fascista: o desafio do cotidiano brasileiro

No final de outubro, a filósofa Marcia Tiburi lançou seu mais novo livro “Como conversar com um fascista – reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro”,  que problematiza o regime de pensamento praticado no Brasil, considerando o cenário político dos últimos cinco anos.

Em meio a um declínio, no que se refere à questão da educação e, consequentemente da produção de pensamento crítico-reflexivo, o livro nasce quase a partir de um grito de socorro, um grito mudo; que pede o diálogo – e talvez nem saiba. Prova disso, foi o esgotamento da primeira edição antes mesmo do lançamento “oficial”, que ocorreu no último dia 05, no Rio de Janeiro, e os mais de 1300 seguidores em menos de duas semanas, na página aberta no Facebook.

  Com prefácio do jornalista e Deputado Jean Wyllys – que, cá entre nós, é uma das figuras mais corajosas, que há tempos tem enfrentado uma corja de fascistas na Câmara – e apresentação do juiz de Direito Rubens Casara, a filósofa se debruça sobre aquele sistema de pensamento orquestrado pelo ódio, disseminado na internet por sujeitos – ou talvez  valha dizer objetos – que reproduzem  discursos prontos, falaciosos e irreflexivos do próprio sistema que o alijou do direito a uma Educação emancipatória, no que tange à abrangência do campo do conhecimento e reconhecimento da diversidade sociocultural, num país tão rico em termos de pluralidade.

  Mas a fase em que vivemos é tensa e anti-política. Marcia diz uma  coisa genial (entre tantas!) sobre a relação entre povo, política e poder, que, a meu ver, é um convite de engajamento no ativismo e militância por todxs aquelxs que estão fora – ou que de alguma forma foram excluídxs – da forma tradicional de se fazer política no Brasil, que é a seguinte: “Podemos dizer que as pessoas, indivíduos e grupos, odeiam, sobretudo a política e que os políticos (savaguardando exceções) odeiam o povo, se quisermos pensar no ódio em nível sistêmico”. E eis que o cenário torna-se o que a autora chama de círculo vicioso do vazio do pensamento – repetitivo e imitativo – e que eu chamo de aniquilador. Não tem fim. A menos que façamos algo; a menos que adentremos na política partidária e façamos um trabalho de reestruturação radical. E o convite é esse. E não serão mais homens governando. Serão mulheres. Feministas.

A produção de textos filosóficos de Marcia Tiburi é brilhante, porque tirou a  filosofia daquele lugar, digamos, hermético, e a trouxe para o cotidiano,  no sentido de uma abertura cuja prática se baseia em “fazer junto”, com o outro. Neste livro, em especial, trazendo de forma quase didática – e simples, sem ser simplória – uma reflexão que põe o leitor em contato consigo ao problematizar o ódio ao outro que advém essencialmente da ignorância, cuja a capacidade de pensar foi paralisada.

É uma leitura deliciosa que te faz questionar se algum dia você já foi um fascista em potencial, compreender o que há por trás de quem profere um discurso de ódio , além de ser um dispositivo fundamental para lidar com aquelas frases cotidianas do tipo: “Todo mundo faz”, “Sempre fiz assim”, etc., etc. e qualquer outra explicação sobre o livro pode tender ao reducionismo, a alguma limitação – o que de fato é impossível, já que se trata de um dispositivo de abertura ao outro através do diálogo.

Gostaria que, por fim, esse livro fosse lido pelos sujeitos malucos que criam leis que tiram os direitos das mulheres e o direito ao próprio corpo, pelos (anti)políticos que querem fechar escolas e encarcerar crianças, que proíbem a juventude negra e pobre de frequentar praias, por aqueles que criam estatutos que afirmam que uma família é composta apenas por mamãe, pai e filho, por aqueles que assassinam os povos indígenas originários desta terra, em nome do agronegócio e de interesses próprios, etc. Mas se isso não for possível,  você pode dar de presente ou melhor: ler para o sujeito, ajudando-o a pensar, con-versando. Não é uma boa ideia? Diante da crise (socio)econômica que assola o país, certamente será o único presente que deveria ser investido neste Natal.

Presenteei um inimigo e ganhe um amigo!
Presenteei um inimigo e ganhe um amigo!

Por que a “Teoria Queer” é só teoria?

Sobre a experiência com o I Seminário Queer – Cultura e subversão das identidades

“Não queremos que apareça neste seminário queer, nada de queer. Nem a minha mísera performance – que não vai acontecer aqui. No caso de apresentar uma questão queer, você não pode apresentar uma questão queer, um conteúdo queer, numa forma queer. Continua sendo queer essa questão?”

Poderia começar esse texto de várias maneiras, inclusive partindo do próprio questionamento do título, ao tentar responder a pergunta a partir de uma lúcida análise, pensada por uma das convidadas a discorrer sobre o cerne da questão queer. Decidi, então, começar com um recorte fundamental (esse, entre aspas) da fala da filósofa Marcia Tiburi, que, de maneira crítica e autocrítica (como sempre <3), apresentou em sua fundamentação teórica-prática-reflexiva-provocante, no segundo dia do I  Seminário Queer – Cultura e subversão das identidades.

Antes de problematizar a ‘problematização’  – ou por que não dizer “reflexão”? (já que filósofas essencialmente refletem) – da Marcia Tiburi, quero apontar minhas próprias críticas – embora eu não seja uma academicista normatizada ou especialista em teoria queer ou coisas do “gênero” -, no que diz respeito a estrutura de construção ao ser pensado na organização de um seminário com a temática queer na cidade de São Paulo.

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Marta Colabone (mediadora), Berenice Bento, Marie-Hélène Sam Bourcier e Marcia Tiburi

Minha primeira pergunta – e imagino que também deva ter sido a das pessoas que estiveram presentes, que questionam e não lidam bem com a heteronormatividade ou quaisquer outras regras impositivas socialmente – foi: “Como assim um Seminário dito “Queer” – que pressupõe ser um ~ movimento subversivo e de desconstrução dos padrões normativos de gênero, sexualidade e relações sociais ~ -, não tem, na sua composição e no espaço de fala, mulheres trans, homens trans, não-binárias e pessoas negras na programação e ainda por cima veta, silencia e reprime uma PER-FOR-MAN-CE de leitura textual, que foi apresentada, enquanto ‘pro-pos-ta’ de encenação?

Para você que caiu de pára-quedas e não faz  ideia do que estou escrevendo, pode acompanhar neste vídeo, por volta dos 56′, a fala-luz-no-fim-do-túnel da filósofa que, a meu ver, foi a mais reflexiva, autocrítica, ousada e performática, dentro do que ela mesma denomina como “mundo mix acadêmico”  – num outro contexto.

O formato “engomadinho” tornou o seminário um “cisminário”. De queer, só as teorizações, mesmo, que vieram naquela linha de texto pronto, com elucidações magníficas de desconstrução dos problemas de gênero. Claro que não estou desconsiderando os anos de estudo, pesquisas, teses e análises de todxs que obtiveram seu lugar de fala no cisminário. Inclusive, vocês podem ver aqui o currículo e a seriedade das pesquisas que essas pessoas fazem no Brasil e fora dele. Faço minha ressalva aqui para o brilhante Jorge Leite Júnior, que arrancou várias risadas do público, em suas cadeiras naquele auditório escuro, frio e fúnebre, numa fala marcante, provocativa, debochada e bem humorada com seu carisma absolutamente singular ao dizer coisas do tipo: “Olha o que está acontecendo com o termo “gênero”. Virou um monstro. Está assustando as pessoas. Daqui a pouco você vai assustar alguém ao dizer: “Gênero!” ou então “Cuidado que o gênero vai te pegar!” (escrevendo não é tão engraçando quanto ver aqui, nos 1:01:40′).

Jorge Leite Júnior no ápice da performance "queertíca"
Jorge Leite Júnior no ápice da performance “queertíca”

Ressalto que não tenho a pretensão, tampouco vocação, de ser aquela blogayra chata que critica a tudo e a todxs na internet. Ao analisar todo o contexto, podemos considerar aspectos ultra relevantes sobre a coisa toda: Discutir o conceito de gênero e suas implicações num momento gravíssimo em que o PME (Plano Municipal de Educação) da cidade de São Paulo foi aprovado, excluindo ações de combate à discriminação de gênero e orientação sexual, chega a ser pra lá de tardio. Trazer Judith Butler ao Brasil, que é uma das principais formuladoras da Teoria Queer – que aliás, esteve pela primeira vez por aqui e participou dias antes do II Desfazendo Gênero, que ocorreu em Salvador, idem. A propósito, para não exceder na bajulação, minhas considerações sobre Judith Butler nesse seminário são, digamos, propositivas. Butler contextualizou o conceito queer no Brasil, fazendo um importante e urgente recorte na violência institucionalizada pelo Estado, que é uma violência “legal”. Apontou, ainda, para o índice da violência de gênero que sofrem as mulheres, assim como a questão do feminicídio (Cerca de 5 mil mulheres são assassinadas no Brasil por ano, por “serem mulheres”),  e também para o lamentável lugar que o Brasil lidera na lista dos países que mais assassinam pessoas trans no mundo.

Em seu texto, “Direito à montagem”, Marcia Tiburi dedicou sua performance (ou tentativa de performatizar) à cartunista Laerte, que diz ter sido “com quem aprendeu a imitar uma mulher”. Claro que Duda Babaloo – quem se travestiria de Marcia Tiburi, ao performatizar seu texto, se não tivesse sido, de alguma forma censurada – também foi costurada durante toda a fala, porque, né?

Por fim, realmente não sei se a caretice está dentro das instituições religiosas ou nas instituições que se dizem “ter compromisso com a noção de diversidade”. Marcia Tiburi, na verdade, não foi silenciada. Ela soube usar impecavelmente seu lugar de fala. Sobretudo ao substituir o espaço do discurso pelo diálogo, certamente pelo fato de ser filósofa e pensar filosoficamente, já que filosofia não é algo dado como pronto, portanto é sempre um experimento de ‘surpresa’.

Bem, óbvio que para sanar essas inadequações do cisminário, houve uma festinha pra convidadxs na revista Cult, onde eu pude encontrar com a  “Prática queer”  Laerte Coutinho, que talvez possa ser a partir de quem poderíamos – já que estamos importado pra cá -, “abrasileirar, enegrecer e indigienizar” a teoria queer, como pensou a Marcia.

laerte coutinho and me by Marcia Tiburi
Laerte Coutinho and me by Marcia Tiburi

Agradeci  Laerte por ter saído do lugar “invísivel” e ela, Laerte que é, me corrigiu: “prefiro indizível”. ❤

“O que dirão sobre o feminismo do início do século XXI?”

Carla Rodrigues, Djamila Ribeiro e Marcia Tiburi
Carla Rodrigues, Djamila Ribeiro e Marcia Tiburi no seminário “Feminismo hoje: urgência e atualidade”

Semana passada tive a oportunidade de estar com mulheres feministas – ativistas, militantes históricas, escritoras, jornalistas, artistas, intelectuais e professoras universitárias -,  no seminário “Feminismo hoje: urgência e atualidade”, cuja organização ocorreu pela formidável Marcia Tiburi, junto ao Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP.

A pluralidade das figuras que estiveram presente foi de extrema importância, no  sentido de ampliar o debate para a compreensão do feminismo que se fala atualmente e para problematizar um aspecto que considero crucial  e que tenho me ocupado em compreender neste momento: a confluência rumo a um feminismo interseccional.

A primeira convidada a expor suas análises –  e é a quem cujo o texto pretendo me atentar –  foi a professora Carla Rodrigues que, com clareza e reflexão, ao performatizar a desconstrução na sua própria fala, ao não pretender encontrar uma verdade única sobre a mulher, nem mesmo se essa verdade única fosse  dizer que não haveria verdade única sobre a mulher,  me intrigou com esse questionamento que intitulo este meu texto: “O que dirão sobre o feminismo do início do século XXI?”

Carla, ao propor essa reflexão, puramente provocativa (e necessária!), aponta para a ideia de que o feminismo estaria ultrapassado e/ou mesmo morto; e que certamente a marca do feminismo do início deste século pudesse estar atrelada à (ou ao gozo na) subalternidade. E, de fato, se formos avaliar esse “gozo na subalternidade”, podemos nos debruçar numa análise que perpassa muitos campos, aos quais as mulheres se submetem (ou foram submetidas?), enquanto objeto e não como sujeito, mesmo quando acreditam que são sujeito, quando introjetam, no caso de uma propaganda, por exemplo, que “vende” uma imagem plástica de “poder”, quando na verdade é o inverso, a própria  produção da mulher-mercadoria-objeto para satisfação do sujeito da dominação masculina.

Entre tantas  reflexões geradas naquele encontro – e futuramente quero ter oportunidade de elaborar com um grau maior de profundidade, como quando Jarid querida Arraes, pontua que “o feminismo não é apenas a luta contra a dominação masculina(!)” – , logo de cara fui incomodada – no sentido da agulha filosófica – com as primorosas análises da Carla, que ao pensar sobre a mulher enquanto sujeito da subalternidade, questiona: será que isso nos serve como ponto de convergência hoje? e eu penso: Até que ponto esse lugar de subalternidade é reconhecido como tal?

UPDATE: O texto da Carla Rodrigues na íntegra pode ser lido aqui ->http://carlarodrigues.uol.com.br/index.php/2991

“Mulheres brancas: vocês têm privilégios, sim. Aceitem!”

Feminismo negro enquanto reconhecimento de  protagonismo e existência

Debatendo o racismo dentro do feminismo branco - Centro Cultural São Paulo
Debatendo o racismo dentro do feminismo branco – Centro Cultural São Paulo – foto: Marina Bitten

Apesar das inúmeras frases enfáticas que pontuaram o debate “Discutindo o racismo no feminismo branco”, que ocorreu no último sábado, 08, no CCSP, decidi fazer um recorte bem específico que faz eu me pôr no meu lugar – enquanto mulher branca, que sou – e aplicar o que, na CNV (Comunicação Não Violenta), a partir da empatia, da auto-empatia e da expressão autêntica, compreende-se por “anfitriar conversas”, com base na coleção de metodologias chamada Art of hosting – Arte de Anfitriar Conversas Significativas, cujo exercício é de criar um espaço acolhedor para todxs, ao identificar o espaço que ocupo na fala – ao me anfitriar -, e reconhecer o espaço de fala dx outrx – ao anfitriá-lx -, exercendo, assim, a escuta empática, que nada mais é que se pôr no lugar dx outrx e, com isso, identificar suas necessidades humanas universais.

Partindo desse ponto, é inevitável dizer que o “feminismo” é altamente complexo. Isso porque transcende a crítica à dominação masculina e abrange discussões sobre as desigualdades sociais, estruturadas na sociedade em:  classe, raça, gênero, orientação sexual e outras formas de controle e dominação, como a própria religião. No entanto, pensar em feminismo interseccional, sem reconhecer a frente de luta e o protagonismo das mulheres negras no feminismo, é negligenciar a desumanização que o povo negro viveu, nos 354 anos de escravidão –  no Brasil, especificamente -, sobretudo o papel das mulheres.

“Racismo não é ‘pauta’, é realidade”

Que “a mulher branca escravizou a mulher negra por séculos”, ou que “enquanto a  branca está ‘lutando’ para ganhar mais na Bolsa de Valores, a  negra está preocupada com o que os filhos vão comer”, ou mesmo “enquanto a branca se preocupa se o filho vai se tornar “o patriarcado” e a negra tem medo se terá seu filho morto pela polícia”, é bem básico para entendermos, definitivamente, que “Não, não somos todxs iguais!”

“Feminismo academicista pra quê? pra vender livro e escrever sobre a mulher negra como objeto de estudo? “Onde é que estão as mulheres negras, aliás, nos livros didáticos?”, “As negras nunca fizeram nada, nunca fizeram parte da história”, “Nós nunca existimos e querem nos exterminar há séculos”, “E as Mulheres trans negras? Não, vocês não podem afirmar categoricamente que vocês convivem com transexuais, porque se você vai fazer uma compra, ela não te atende numa loja; ela não apresenta o jornal que você assiste; não está numa posição de liderança na empresa que você trabalha. Você não estudou na escola com uma transexual negra”.

Amigxs, sim, ainda precisamos falar e mais do que isso: aprender muito sobre o feminismo negro. Sem esquecer de duas coisas: estamos em devir. Estamos num eterno “Vir a ser”, (re/des)construindo nossa subjetividade; sendo cada vez mais feministas, com perspectivas das mais diversas e peculiares, porque somos singulares. Sempre aprendendo, nos permitindo e exercitando a escuta empática, mas sem jamais desconsiderar o protagonismo das amigas. Estão popularizando agora a “sororidade”. Então, tá. Anfitrie xs protagonistx no amor e na sororidade!

beijAs ❤

Feminista: ser ou nascer? Eis a questão!

“Libertem as bundas – e as mentes” 

Já parou pra pensar no quanto é li-ber-ta-dor falar sobre gênero e, consequentemente, sobre Feminismo? E nem é preciso ir muito longe para se dar conta disso.

Depois de muitos anos e experiências – das mais diversas, em inúmeros graus de situações -, numa autocrítica recente, entendi que eu sempre fui feminista, entretanto, não imaginava que isso estivesse atrelado a uma nomenclatura. Ou duas: feminismo e patriarcado.

Partindo do ponto em que uma das primeiras críticas do movimento feminista é a desigualdade [e os estereótipos] de gênero – que, cá entre nós, faz mal pra todo o mundo – , faz sentido eu me compreender enquanto feminista no momento em que eu achava injusto quando minha mãe saía pra trabalhar e eu, desde sempre, cuidava da casa, cozinhava, e meu irmão nunca colaborava. Ela até entendia minhas queixas, mas aí dizia pra ele: “– Você tem que ajudar a sua irmã”. Frase que ela, como muitxs, naturalizaram de um sistema discursivo chamado patriarcado.

Outra das lembranças mais incômodas que tenho da minha infância e que, inconscientemente denotava um sentimento feminista – e uso o termo sentimento, no intuito da crítica, contestação e indignação – , é dos tapinhas na bunda que eu levava (beirando os 9 ou 10 anos), do marido de uma tia, no corre-corre entre sala e quintal durante os almoços de família, enquanto os homens ficavam na sala vendo o jogo, e as mulheres na cozinha papeando, lavando a louça. Eu morria de vergonha, porque me achava gorda, mas na verdade não entendia que eu já tinha um corpo de “mulher”, um quadril largo hereditário – que me custava demais, a propósito, encaixar naquele corpo “feminino”.
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Essa questão do corpo feminino também se alastrou na adolescência, a ponto de me privar de usar determinadas roupas pra não ser olhada, desejada ou estuprada – a maior humilhação que, certamente, alguém que se diz mulher pode sofrer. Certa vez, fazendo um Cooper, que durava em torno de 45 minutos, decidi contar quantas buzinadas escutaria durante o percurso. Foram exatamente 52 buzinadas em 45 minutos de caminhada. Eu não estava nua. Estava usando uma calça preta, dessas de ginástica, e uma camiseta (que cobria a “bunda”!)

Evidentemente tenho que ressaltar que esse é apenas um pequeno recorte de um aspecto (importantíssimo!) do feminismo, que é a redução e objetificação da mulher, que alavanca pra questão da “violência contra a mulher”. E vejo a importância de dizer que a violência contra a mulher é física e simbólica. Física quando uma mulher é estuprada e morta, e simbólica quando a mulher é reduzida no mercado de trabalho, por ter a mesma formação e ocupar o mesmo cargo que um homem e receber 30% a menos de salário.

Gradativamente, num processo de extrema libertação, estou descolando aquele adesivo que colaram em mim quando nasci, chamado “mulher”. E desescravizar de um sistema – que é de plástico, só visa o lucro e é aniquilador se faz urgente, embora tardio.

Essa dominação do sistema ditatorial que escraviza as pessoas por meio da plasticidade foi tão naturalizada, que está enraizada na subjetividade das pessoas. Um exemplo foi que outro dia (há cerca de 8 anos atrás), ao caminhar com uma ‘amiga’, ela me disse que aquela calça que eu estava vestindo evidenciava o tamanho da minha bunda e o quanto ela era flácida – li essa parte nas entrelinhas. Na época, estava tão fragilizada que comprei aquilo, ao me tornar uma refém do espelho (e da academia!). Até que alguns anos depois conclui que não, não estava nenhum pouco interessada em saber o que pensavam sobre a minha bunda. Mas me intrigou a reprodução do discurso que a amiga introjetou do sistema, juntamente com a sua incapacidade de senso crítico que, sobretudo, (também) lhe fazia mal.

Na cultura atual – século XXI, 2015, no Brasil, especificamente – , não vejo muito sentido uma pessoa se dizer mulher e não ser feminista. Porque a base do feminismo é a contestação do sistema autoritário, masculinista. São inúmeras as marcações físicas e psíquicas àquelas que foram histórica e socialmente nomeadas como mulher. A indústria da publicidade não me deixa mentir. Ou foram as mulheres que criaram a bunda, enquanto categoria produto estético idolatrado salve salve?

E já que o Brasil foi/é mundialmente conhecido como o país da cordialidade, do futebol, da bunda e da cerveja, nada mais justo começarmos uma revolução feminista pela tomada da consciência da bunda, enquanto singularidade. Acho que vou organizar uma marcha. Marcha das bundas livres; porque essa chateação não pode ser única e exclusivamente minha. Talvez muitas pessoas simpatizem, se identifiquem e vêm marchar junto. Mas de boua, sem neuras com celulite, estrias… (aquelas coisas normais presentes nos corpos das mulheres ‘normais’).

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A insistência do feminismo versus o restante

Madonna no clipe de "Die another day"
Madonna no clipe “Die another day”

Desde a época da faculdade tenho uma mania chata  de pensar o título antes de escrever o texto – quando era minimamente jornalístico. Agora, que escrevo espontaneamente para este blog, nem sei mais atribuir minha escrita a qualquer gênero ou categoria existente, o que também já não interessa mais.

 Partindo do pressuposto que o assunto é hashtag feminismo, me pauto em sua insistência de existência e perpetuação –  mais que necessária. (Felizmente!) tenho notado um surgimento forte, não só do termo, mas de movimentos que se intitulam “feministas”. Pensando em 2015, desde o ovacionado discurso da Patricia Archette, ao ganhar o Oscar de melhor atriz coadjuvante no início deste ano – que teve enorme repercussão, ao reivindicar pela igualdade de gênero e equiparação salarial para mulheres nos EUA – , a coisa ficou óbvia que o que se discute no feminismo no Brasil também é pauta cotidiana no país dos “gringos que queremos ser”.

Não por acaso, Patricia é branca, “lôra” dos olhos azuis, norte-americana e estrela de cinema. Agora se pensarmos que foi uma pessoa nessas condições todas de privilégio que fez esse  discurso em apoio e “generosidade” às mulheres (dos EUA), pensemos qual seria o discurso se trouxermos essa reflexão para o cenário brasileiro, minimamente falando da mulher – não apenas negra, mas pobre, de periferia, que sequer teve oportunidade de aprender a “fazer” o nome, como algumas dizem. É. O buraco é bem mais embaixo, cara mia.

Com 515 anos de Brasil,  a impressão é que não aprendemos nada. Ou melhor: não aprendemos a pensar.  Negligenciamos a história e o pensamento reflexivo. Um  fato inconcebível, por exemplo, é, não só saber que ainda existe o programa, mas ver gente assistindo o tal do Faustão, num domingo à tarde. Ou então, compreender a existência de “Cidades alertas” na televisão, assistida pela  “tradicionalíssima família brasileira”.

Essa salada toda é a zona que se vive no país da bunda, cerveja e futebol. Da cultura em que é mais importante ter do que ser e seremos sempre cópias, porque somos mamíferos e imitamos uns aos outros desde que desenhávamos em cavernas. Essa é a salada de um povo que é, culturalmente tão rico – com sua miscigenação (herdada de períodos sofridos, escravocratas), vastas tradições religiosas, comidas típicas para todos os gostos, danças com as mais variadas características e sotaques nem se fala! – e, contraditoriamente tão pobre, inculto, sem auto-estima, coitado, que é esmagado por um sistema que lhe vende a plasticidade reciclável aniquilante.

A expressão mais usada hoje – sempre atrelada ao feminismo – é o “empoderamento”, que se for buscar na etimologia pode ser compreendido como “tomar o poder para si”. Certamente no contexto político brasileiro atual, ao meu ver, esse termo deveria estar intrínseco a um outro, que é o resgate da política. Anterior a isso tudo, faz-se necessário descermos alguns (vários) degraus para compreender o que está acontecendo lá em cima. O brasileiro, por ser conhecido – pejorativamente – como um povo cordial, que, como Eça de Queiroz já disse, fala um ‘português açucarado’, precisa entender algumas coisinhas. Primeiro que a vida não é trabalhar o dia inteiro, bater ponto, assistir novela das oito e tomar coca-cola. Nada contra tudo isso, só vejo que o empobrecimento da existência tem se dado de uma forma alastradora, que está fazendo mal, muito mal à sociedade brasileira.

Enquanto a gente estiver fazendo carteirinha de estudante falsa pra pagar meia no cinema, assinando lista de presença pro coleguinha da classe ir pro bar, se alimentar de ‘Cidades Alertas’ e Faustões, ou engaiolar pássaros (com asas!) dentro de casa e ~achar que está legitimando o amor aos bichos ~ e, ainda, falar mal dos políticos corruptos, aí eu vou ter que concordar com aquele youtuber: “Não faz sentido”.

E não faz sentido falar sobre feminismo no Brasil só pra elite. Não dá para ficar no discurso entre intelectuais para abordar problemas de estrutura básica, de direitos básicos não assegurados. O diálogo é o caminho. Caminho, meio e fim. Entretanto, faz-se necessário percebermos que o país está doente. Muito doente. O país precisa de ajuda, de carinho e de uns bons livros de história.

Penso, então, que, assim como Simone de Beauvoir disse lá no início da década de 1950, que “primeiramente as mulheres devem estar cientes da dominação masculina, para, então, acreditar na sua capacidade de mudança de paradigma”, esse trabalho em contexto nacional deve ser instigado a ser pensado coletivamente.

O termo “empoderamento”é muito o lance da #partidA e, evidentemente, pode alterar esse significado, tornando-o sutil, ao invés de “poder” enquanto tendência autoritária,  mas “poder” no sentido participativo, da auto-representação.

Essa semana fui confrontada por dois tipos antagônicos a despeito da #partidA: Uma pessoa que nasceu antes dos 1950 e outra pós 1990. Os discursos foram mais ou menos assim: “Que perda de tempo com esse negócio que não vai dar em lugar nenhum” e o outro foi algo do tipo: “Que fogo de palha! fazer partido com quem nem, sequer, é de movimento é pôr a carroça à frente dos bois”.

Diante da calamidade do discurso teórico/prático que vivemos, restam 3 alternativas:

1-  ou você finge que nada está acontecendo;
2-  ou você luta;
3- ou você se mata;

Eu entendi o que está acontecendo e não quero morrer. Não espontaneamente. Mas o feminismo enquanto agente transformador do restante: muito me interessa.

Com amor, por favor. ❤

A #partidA começou

Arte:  Aline Biz
Arte: Aline Biz

Durante a 2ª reunião da #partidA, que ocorreu em São Paulo, no último dia 14, uma das falas que mais me chamou a atenção foi  a da garota que, ao se apresentar, enfatizou que não gostaria de estar num lugar em que “precisaria se explicar”.

Em meio a uma crise – quiçá uma das piores – de representação sociopolítica no Brasil, juntamente com a dificuldade de acreditar em novas formas de fazer política, faz-se necessário explicar a #partidA, sobretudo do ponto de vista da convocação à reflexão política. Estamos bem cansadxs do formato vertical, autoritário, fundamentalista e ultraconservador com que  os políticos tradicionais, em especial aqueles que exercem o governo no Brasil, em um modelo determinado pelo patriarcado, têm conduzido o país.

Tendo em vista que o conceito do partido político está, literal e estruturalmente p-a-r-t-i-d-o, a #partidA emerge de uma provocação. E provoca porque não é partido – com a terminação “o”, nem se assemelha ao formato que esse representa.  O que faz   a #‎partidA não se encaixar em quaisquer termo reducionista ou definitivo é o fato de, por essência, ser um movimentx, em constante superação, que acolhe e é acolhidx por todxs àquelxs que são tratadxs como seres inessenciais, que não deveriam existir. A(o)s  invisibilizada(o)s – uma vez que se trata de uma construção social – a proposta é de dar voz e libertar, trazê-los à política como protagonistas de um processo que visa pavimentar uma sociedade radicalmente fraterna, na qual as diversas formas de opressão acabem substituídas por um modelo que preze a igualdade, mas que assegure e respeite as diferenças.

 A #partidA é também um ato de transgressão. Um movimento que adota a forma de um partido, em meio à crise da democracia participativa. Um ato de acolhimento e amor, em tempos de ódio. Um partido complexo, um feminismo dialógico, em uma época marcada por simplificações, binarismos e incapacidades para o diálogo.

 A insatisfação e a inadequação que incita a existência – e insistência –  da #partidA também se intensifica quando passamos a pensar numa sociedade, cujo regime político se afirma, no plano formal, democrático, mas os direitos e garantias fundamentais de amplas parcelas da  sociedade não foram concretizados; quando a Chefe de Estado é uma mulher e, dos 39 ministérios, apenas 6 são conduzidos por mulheres. Isso em um quadro no qual mulheres votam contra o interesse de mulheres, naturalizam a violência obstetrícia, desqualificam outras mulheres, defendem a criminalização do aborto e não conseguem se libertar da ideologia patriarcal, a qual introjetaram desse sistema.

 A #partidA revela-se uma necessidade ao perceber que, em um recente protesto, uma mulher ostentou um cartaz, escrito: “Feminicídio, sim! fomenicídio, não”. Isso na mesma quadra histórica em que as estatísticas apontam para cerca de 43 mil assassinatos de mulheres no Brasil (2000-2010) – este mesmo Feminicídio, que a senhora estampa no cartaz, ao pedir o impeachment da presidentA.

Ao mesmo tempo em que a #‎partidA critica o sistema hierarquizado de dominação masculina representado pelos “homens-brancos-cisgênero”, ela surge quase como uma utopia, porque o processo de construção é horizontal. É criado, pensado e surge à partir do diálogo. Muito diálogo. A #partidA não rechaça, não aponta o dedo, nem avilta, acolhe. É democrática por excelência. É feminista porque todas  – inclusive aquelxs que não se declaram como mulher – sabem e reconhecem o papel de seres subalternizados e secundarizados historicamente. E por ser feminista democrática, a #‎partidA abarca os seres inessenciais (todo o resto, que não entra na normatividade: não serve ao opressor, mas à libertação de todas as formas de opressão): índios, negros, gays, trans, mulheres e outrxs mais que não se enquadram em qualquer papel “digno“ no modelo estigmatizante patriarcal. A #partidA surge para romper com o processo de “etiquetamento” e ódio em vigor na sociedade brasileira.

A #partidA não é uma aventura em busca de poder para “poucxs”. É fruto de um longo processo de luta que sempre foi protagonizado pelas mulheres, sem o qual, hoje, não existiram as condições objetivas à transformação do poder opressivo patriarcal em poder compreensivo libertador, sempre a partir da ético-política feminista. São as mulheres – sujeitxs de uma revolução (que deu certo!) – que estão legitimadas a convocar para o resgate da política, a instigar novas lutas, a ensinar e a transformar o imaginário patriarcal que tanta violência e dor ainda produz.

Em meio a tantos feminismos, todos com potencial de ensinar e aprender com os demais, e sem a pretensão autoritária de dizer qual é o melhor feminismo para o Brasil, a #partidA se propõe a acolher a todos eles em torno de um “comum”: a radical destruição do modelo patriarcal e de suas práticas, em sua maioria opressivas, como são também as práticas que levam à dominação de classe, racial e de padrões ditatoriais de normalidade.

No campo das lutas políticas, a fragmentação das potências que miram na libertação da opressão, com a criação artificial – e ideológica – de distâncias entre aliados que sofrem de diversas maneiras, mas sempre em razão de um mesmo modelo de dominação, que reserva privilégios para alguns, sempre foi a estratégia para manter as diversas formas de dominação. É hora de dar a #partidA para um luta que una identidade e classe, negrxs e brancxs, mulheres cis e trans, gays, lésbicas e heterossexuais, bem como todxs aqueles que sofrem em razão das mais variadas formas de dominação, que tem como modelo a dominação patriarcal.

A #partidA já começou. É de todxs, inclusive daqueles que nem sabem que dela necessitam.

Como “dar a volta por cima” mesmo estando por baixo

Sobre uma desalienação provocada

Maria Luiza está dando a volta por cima. Nunca entendeu exatamente o que essa expressão queria dizer, porque a expressão sempre esteve muito ligada àquela ideia de alguém que passou por uma fase ruim (tsc) – como se a vida fosse cheeeia de alegrias – e “dava a volta por cima” como um sentimento de vingança, que afirmava  para outrem – qualquer um que fosse – que estava melhor do que antes. O fato é que ela estava dando a volta por cima, mas no sentido oposto ao que a expressão poderia significar no senso comum. Ela nem estava num super trabalho, esbanjando ao pagar a conta dx convidadx nos (bons) cafés que tomava por aí, sempre criados como pretextos (e ela faz isso como ninguém); tampouco fotografando, fazendo teatro, viajando com seus  filmes, namorando, escrevendo ou morando naquele puta apartamento num dos bairros mais badalados de São Paulo. Pelo contrário. Ela estava dura, desempregada, sem um puto no bolso – além de uns dólares no cofre, que preferia não mexer, na esperança de usar numa futura viagem com passagem só de ida. A namorada  a deixou , o que a fez recolher-se para si, por tempo indeterminado.

Mas, então, que cargas d’água seria “dar a volta por cima”?

Antes de se assumir como Maria Luiza (com “Z” e sem acento no “i”), Malu, como sempre gostou de ser chamada, era Fernanda. Cresceu numa periferia bem pobre da capital paulistana, naquelas casas com telhado, que quando chovia saía espalhando baldes pela casa, por conta das goteiras. Em época de temporais – coitada! -, aos 9 anos de idade se desesperava incansavelmente com o rôdo, tirando a  água da chuva que não perdoava e invadia o um cômodo,  construído nos fundos da casa de uma conhecida, onde morava com a mãe e o irmão mais novo. Fernanda sempre foi muito tímida. Nunca soube tomar decisões porque tudo era ditado pela mãe, Gabriela – que até a forçava frequentar a igreja aos domingos,  para se tornar uma moça “direita”.  Até as roupas  que Fernanda usava quase nunca eram escolhidas. Gabriela comprava e ela tinha que vestir – reforçando ainda mais a imagem que tinha sobre si mesma: feia, burra e inútil.

Mesmo sendo pobre, sua mãe se espelhava nas mulheres das novelas, então sempre achava que estava por dentro da moda. Fernanda sofreu muito na infância. Presenciou muitas brigas entre seus pais. Foi a primeira filha de uma gravidez acidental entre dois jovens de 16 anos, num período em que o mundo morria de AIDS. O pai usava muita droga e chegava em casa sempre agressivo, desorientado. Descontava tudo em Gabriela. Quando passava das dez da noite e ele não chegava, Gabriela demonstrava nervosismo e Fernanda começava a esconder facas, garfos, martelos, chaves de fenda e o álcool, porque o pai sempre ameaçava pôr fogo na casa. Eram noites de muito temor. Noites imprevisíveis e intermináveis.

Meritocracia?

Sem muito o que fazer, além de ir à escola e cuidar da casa,  sempre às seis da tarde Fernanda começava a preparar o jantar –  comida, essa, que a mãe levava de marmita todos os dias para o trabalho -, assistindo à televisão. Era apaixonada por uma atriz da novela das seis e até enviou cartas para a emissora, que a tal da atriz nunca respondeu. Assim Fernanda cresceu. Entre um ambiente sem diálogo e sem muita compreensão de outras possibilidades do que a vida de fato poderia ser, e aquela realidade distante que via na televisão.

Aos 14 anos uma grande porta se abriu para Fernanda, ao iniciar o ensino médio num colégio do centro da cidade, que era considerado o melhor da rede pública, na época. Foi lá que se apaixonou por uma São Paulo que ela desconhecia – do caos, da diversidade, da loucura e das possibilidades. E põe possibilidade nisso. Foi através desse colégio que descobriu uma oficina cultural e vários cursos de artes, entre eles o de teatro – que para sua alegria era gratuito -, mas a seleção era por meio de um teste de interpretação. Mal sabe como, Fernanda passou. Tinha que interpretar um diálogo com uma  moça que conheceu lá na hora. A única lembrança que tem desse período é de que o avaliador perguntou qual tinha sido a última peça que ela assistiu. Foi um musical com Claudia Raia, ela respondeu. A pena foi que Gabriela não deixou Fernanda continuar. Queria que ela fosse estudar alguma coisa “mais séria”. Que pagasse bem, tivesse futuro. Um curso de enfermagem, ela cogitou. Fernanda cabisbaixa, e sem voz,  mesmo não concordando, concordou.

Nessa mesma época conseguiu seu primeiro emprego. Não era qualquer emprego. Era o primeiro emprego num escritório na Avenida Paulista. Ulalá! A alegria era tanta que os R$300,00 que ganharia por mês era praticamente um prêmio da loteria. E era. Era o início de sua emancipação. Fernanda nem sabia exatamente o que estava acontecendo, porque não era de capaz de mensurar aquilo tudo. O trabalho a dignificou. Depois de anos a mãe arrumou um namorado e Fernanda já não suportava mais a presença dele em casa. Era invasivo demais. Pensou que deveria sair de casa, já que não “servia” mais e seu lugar havia sido secundarizado.

Último ano da escola. Fernanda foi morar com as tias, que sempre a paparicaram na infância. Voltou a fazer teatro, reencontrou sua paixãozinha da adolescência e foi namorar. Mudou-se de emprego, e se matriculou num cursinho pré-vestibular para reaprender o conteúdo dos últimos anos, já que conciliar a jornada de nove horas de trabalho com os estudos havia comprometido seu rendimento escolar.

Ao mesmo tempo em que se sentia livre, não sabia o que fazer com aquela liberdade toda. Quando terminou o colegial pensava que fosse morrer (e quase se matou!). Chegava em casa, colocava os CDs do Milton Nascimento, Beto guedes, Lô Borges, Flávio Venturini, Clube da Esquina, 14 Bis e chorava… vivia uma melancolia infindável. Durante um longo período escondeu-se numa redoma de vidro e começou a escrever. Involuntariamente. Aquelas cartas que ninguém nunca leu e que qualquer Sylvia Plath teria inveja de não ter escrito.

Filosofia..

Um ano depois de concluir o colegial decidiu fazer o curso de rádio e televisão. Achou que ia se dar bem, por estar familiarizada com aquelas linguagens televisiva/radiofônica. Ao entrar na universidade algumas fichas começaram a cair. Foi a primeira vez que ouviu falar no termo Indústria Cultural e Sociedade do espetáculo.

Sua timidez, que sempre foi um verdadeiro karma, a fez fugir de encontros, de dar opiniões, de se mostrar para o mundo. Sempre se reduzia nos grupos que passou a frequentar na faculdade, teatro, e no trabalho. Era um universo à parte. Não conseguia fazer conexão com o que lia e ouvia. Falta-lhe desenvolver um pensamento crítico. A deficiência cognitiva era grave. Atrapalhava a potencialidade do diálogo, das relações, da vida em sociedade. Sua auto-estima foi estraçalhada. Era como uma marionete, com os cordéis rompidos. Enquanto os colegas da mesma idade eram super confiantes, bem articulados, cheios de opinião, já haviam morado fora do país e falavam um terceiro idioma, Fernanda ficava ali, se enfiando num buraco cada vez mais fundo, se vendo como um ser inessencial, que não  deveria estar ali em sociedade, porque não era bonita, não falava três idiomas, nem sequer havia viajado de avião. Sua insegurança a levou a uma depressão profunda.

Um dos fatores que mais lhe atrapalhou a vida foi que ninguém, sequer, leu um livro para ela – o que a prejudicou imensamente na vida social. Fernanda não se deixou abater. Reluta contra seu analfabetismo funcional o tempo todo. Ia para a cama com Schopenhauer, Nietzsche e Clarice Lispector. Não entendia nada. O pouco que entendia foi abrindo-lhe uma  porta para o desconhecido. Um desconhecido que lhe fazia sentido; porque não trazia respostas. Trazia perguntas. E perguntas era o que ela mais precisava  naquele momento.

Depois de aprender a desenvolver um pensamento reflexivo por meio – do que descobriu ser o real significado da vida – do que atribuem como “Filosofia”, Fernanda decidiu se tornar Malu. Encerrou o curso de rádio e televisão e vai todos os dias a uma biblioteca no centro da cidade. Está estudando para conseguir uma bolsa numa universidade pública, no curso de filosofia. Está desempregada e bastante preocupada – não porque alguém vai dizer ou pensar alguma coisa sobre isso -, mas porque há contas para pagar. Não sente-se incomodada por, ainda, não ter estudado fora do país; tampouco por não ter o último celular da maçã. Compreendeu que a vida de plástico é bem mais triste que a sua melancolia, que é de verdade. E que dar a volta por cima pode significar muitas coisas, inclusive dar a volta por cima de um conceito que está mal encaixado. Nem tudo que está por cima está por cima. Ainda assim, Malu deu a volta por cima.